Sopro

Teatro D.Maria II

Sopro
Quando os holofotes apontam para a sombra

Gonçalo Frota

O maior elogio que se pode fazer a Cristina Vidal é não reparar na sua presença. Na vida de um ponto, a perfeição é a invisibilidade – por isso, veste-se sempre de preto – a contrastar com a sua pele pálida, abrigada que está sempre dos holofotes; mas a perfeição é também o facto de o seu sussurro não se escutar sequer na primeira fila – a sua voz é apenas um sopro, um comboio de palavras inexpressivas que só ganham sentido quando saltam da sua boca, deslizam pelos ouvidos do actor ou da actriz e se transformam em língua viva ao serem projectadas por outro corpo com toda a intenção. E é por isso que a maior qualidade de Cristina Vidal, ponto do Teatro Nacional D. Maria II desde 1990, é não se fazer notar. É chegar ao fim de cada apresentação e, ao mesmo tempo que os protagonistas se curvam em vénias diante dos aplausos, ninguém se lembrar que ela também esteve na sala. Esteve ali, escondida, a seguir cada linha de texto, a ser a rede de segurança que garante que as personagens não caem desamparadas num silêncio demasiado real e que as falhas de memória não apontam para a eternidade.
A ideia de escrever uma peça a partir de Cristina Vidal (e da sua actividade em vias de extinção um pouco pelos teatros de todo o mundo) assomou originalmente na imaginação de Tiago Rodrigues em 2010. Era a primeira vez que apresentava uma criação sua no Teatro Nacional, Se Uma Janela se Abrisse, e não havia como não se deixar fascinar pelo labor de Cristina Vidal e de João Coelho, os dois únicos pontos que restam em Portugal, cujas funções pareciam ser o resquício de um outro tempo. Mas só com a reentrada de Tiago Rodrigues no Nacional, para assumir a direcção artística, em 2015, é que a ocasião para avançar com Sopro se revelou em pleno. E foi então que o dramaturgo convidou Cristina para um café, mesmo ali ao lado, no Ponto de Encontro, que havia de descambar em vários cafés, até conseguir convencê-la a subir a um palco e a tornar-se o centro de um espectáculo, à vista de todos.
Talvez as chávenas de café não tenham sido tantas assim e é possível que Cristina Vidal não tenha resistido tanto quanto seria de imaginar ao desafio. Mas é verdade que da primeira vez que visitou o Teatro Nacional, ainda em criança e levada pela mão da tia, foi na caixa do ponto que ficou, com os dedinhos a tocar no palco, como se fosse uma consciente e pequena intromissão de realidade num mundo de ficção. E essa, de resto, é uma marca da escrita de Tiago Rodrigues, fazedor de um teatro que parece instalar no seu centro uma porta giratória para a constante entrada e saída de cena de realidade e de ficção. Sem que seja absolutamente clara, a cada instante, a zona de transição entre esses dois mundos, que se misturam até um e outro serem indistinguíveis.
Na estreia absoluta no Festival de Avignon, em Julho de 2017, ou no imenso périplo que Sopro iniciou passados quatro meses no Teatro Nacional D. Maria II – sala a que agora regressa, de 11 a 19 de Janeiro* –, em cima do palco, a missão de Cristina Vidal não era muito diferente daquela que sempre guiou a sua vida nesse lugar em que o teatro e a vida se tocam: é uma guardiã da memória. Se enquanto ponto Cristina é a tal rede de segurança (aquela que garante que a memória dos actores não dá um passo em falso), quando toma o palco em Sopro é também a si que cabe manter viva a memória do teatro. É, por isso, também uma figura de resistência – é ela que silenciosamente nos diz que não existe apenas presente. E é assim que a vemos, ao soprar cada fala, conduzir o elenco pelas suas próprias memórias até reavivar cenas capitais do reportório teatral. Cenas que pertencem às suas recordações (autênticas ou um tudo-nada mais fantasiadas) das centenas de peças que pisaram ao longo das últimas décadas as tábuas do Teatro Nacional, ligadas ao seu próprio percurso dentro da sala lisboeta mas que coincidem enquanto memória pessoal e memória do próprio teatro. E é assim que o texto de Sopro se vê atravessado por excertos de outras peças e os protagonistas se vêem, de súbito, atirados para a trama de Três Irmãs, de Tchékhov, O Avarento, de Molière, ou Berenice, de Racine.
Da mesma maneira, na verdade, que já antes o dramaturgo e encenador se servia de textos de censores (Três Dedos Abaixo do Joelho), de autores como Flaubert, Tolstoi e Shakespeare (Bovary, Como Ela Morre, António e Cleópatra) ou de material literário e uma entrevista televisiva de George Steiner (By Heart) para alimentar um diálogo constante com a História. Em cada nova peça, aliás, Tiago Rodrigues parece convocar os clássicos para se/nos lembrar de que não chegou aqui sozinho, de que sempre que um espectáculo seu chega a um qualquer palco segue na companhia de uma miríade de referências que, ao invés de serem camufladas, são expostas como reconhecimento dos seus alicerces ou dos seus estímulos primordiais. Um teatro, dir-se-ia, orgulhoso de ostentar as suas próprias costuras.
Em Sopro, estes são textos que servem também o propósito de Tiago Rodrigues manter Cristina Vidal a ‘pontar’ durante todo o espectáculo, mantendo as posições originais de cada um: a ponto sopra o texto, os actores interpretam os grandes papéis, e Cristina permanece sempre na sombra. Mas é através do seu sussurro que as obras fundamentais do cânone teatral surgem diante do público, numa alusão evidente e numa homenagem declarada a todos quantos põem em marcha a máquina teatral e quase desaparecem numa ficha técnica que poucos lêem. E há nisto também a beleza de quem vive para fazer outros brilharem, que se anula e tenta desaparecer no cenário com o propósito único de garantir que todos quantos sobem ao palco não são privados da sua merecida ovação.
Só que agora, sabemo-lo bem, é tempo de ovacionar Cristina Vidal. Mesmo que desviemos o olhar para que ela não se sinta o centro das atenções e só mesmo de relance nos atrevamos a soprar-lhe um quase inaudível ‘obrigado’.

* nesta segunda vida de Sopro, Cristina Vidal sopra as falas a Isabel Abreu, Beatriz Brás, Carla Bolito, Marco Mendonça e Romeu Costa (os três últimos tomam o lugar de Sofia Dias, Vítor Roriz e João Pedro Vaz, intérpretes do elenco original)

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